Sobre abebés, espelhos e reflexos
Gosto de enxergar minhas lentes como espelhos.
Espelhos revelam a realidade refletida, tal qual o clique da câmera. É um hábito, e eu não sei de quando ele data, tentarmos nos preparar para aparecer nas fotografias. Fazemos poses, forçamos expressões. Dependendo da antecedência escolhemos roupas, acessórios e maquiagens para criar as personagens que serão retratadas. Não deixa de ser uma realidade, ainda que seja criada para aquele propósito.
Minha fotografia visa recriar ambientes e situações que sejam mais naturais ao cotidiano e ao apreço de cada cliente. Busco situações espontâneas e naturais para que assim também o sejam suas ações e reações diante da câmera. Como o são as imagens que vemos ao acessar um espelho, imagens que traduzem nossa verdade nua, crua, vulnerável ou maquiada, sensível, triste, leve ou feliz. E por essa razão, me agrada chamar minhas fotografias de reflexos. Embora não cheguem em tempo real, como os que o espelho mostra, têm a vantagem de tornar eterno aquele fragmento da verdade.
Esta relação entre o meu conceito de fotografia e os espelhos vem amadurecendo progressivamente junto com meu próprio crescimento enquanto fotógrafo e ser humano. Para aprender a lidar com traumas e feridas antigas de minha alma, foi preciso olhar pra dentro e entender a imagem que eu enxerguei ali. Desconstruindo conceitos que visavam agradar ao mundo, mesmo que isso custasse minha essência, entendi a importância de valorizar a essência pura de cada indivíduo que eu acessasse. Passei muitos anos sem conhecer de fato minha verdade. Escolhi ajudar pessoas a se libertarem desta condição através da minha câmera.
Batizei meus pacotes fotográficos de Espelho Essencial e Espelho livre porque queria que os reflexos gerados em cada experiência fossem janelas para reflexões sobre a própria essência e noção de liberdade. Ao buscar em cada cliente as escolhas que permeiam os ensaios, é a essência delas que meus espelhos refletem. Da mesma forma que eu precisei me enxergar, entender e aceitar (e ao mesmo tempo transformar), tento oferecer com meu trabalho ferramentas de autoconhecimento puro, sem os próprios filtros limitadores e autodepreciativos adquiridos ao longo do tempo de vida em sociedade. E, sem esses mesmos filtros, uma oportunidade de se enxergar com ainda mais amor e apreço.
Ainda sobre o meu processo de transformação, foi em 2018 que me iniciei na Umbanda, num movimento de despertar espiritual e resgate à ancestralidade que teve início pouco tempo antes. No terreiro que frequento descobri que a Iabá (Orixá feminino - energia da natureza, ou manifestação terrena do poder de Deus, segundo nossa crença) responsável pela minha cabeça é Oxum, conhecida como deusa do amor e da beleza. Coincidentemente, em seus Itãs (lendas) e em sua representação, porta um Abebé (espelho) dourado, com o qual repele as energias negativas a ela direcionadas de volta para a fonte. O artefato também tem a função de nos mostrar aquilo que emanamos para o mundo, de modo a ensinar que o amor que mandamos para fora devemos também direcionar a nós mesmos. Mais do que simples vaidade, ela nos conduz para o autoamor e cuidado.
Com meu despertar para minha identidade e essência, veio uma percepção das necessidades inerentes a elas. Como homem preto nascido em um país fortemente assolado pelo racismo, me vi cada vez mais voltado para o povo preto, e foi um movimento natural direcionar meu trabalho para ele. Em honra às raízes africanas vivas em nosso sangue e na matriz da minha fé, minhas lentes se engajaram na missão do Abebé dourado de minha mãe para levar este autoamor àquelas que eu escolhi abraçar com minha fotografia. O intuito é que os reflexos de toda a beleza, riqueza cultural, elegância, majestade e graça da mulher preta captados por mim sejam também uma forma de fortalecê-las contra as energias deletérias da opressão estrutural que infelizmente ainda vigora no país.
Radicalmente contrário à intolerância e ao racismo religioso brasileiro, que persegue incessante e violentamente religiões de matriz africana, estendo o conceito do abebé dourado a todas as filhas do axé que fotografo, independente de sua pele. É sobre respeito, exaltação, posicionamento, amor e acolhimento. É sobre identidade.